Cada palavra é uma semente...

Como vivemos dias em que cada vez menos se usa e abusa do vocabulário, em que cada dia se inventa uma nova palavra, fica aqui um conselho do pinguim para leitura neste Natal.
O livro é escrito por Susanna Tamaro, é uma viagem espiritual, embaladora, que nos confronta e nos inspira através do realismo e da sensibilidade da prosa envolvente a que a autora já nos habitou.
Para os mais desatentos, Susanna Tamaro é autora de inúmeros bestsellers, como Vai aonde Te leva o coração, A Alma do Mundo, Responde-me e Um País para Lá do Azul do Céu.
Hoje vou transcrever um pouco de um texto que poderás encontrar neste livro.
"Enterrados no lixo do palavreado mediático, já perdemos a percepção da palavra. Um rio de ruído vazio atravessa os nossos dias e escorre por nós, deixando-nos cada vez mais sujos. Em muitos lados, ergue-se o canto das carpideiras: «A poesia tem os dias contados»... « A narrativa está morta e apodrece»... «O ser humano está demasiado avançado para se entreter com esses contos da sua história evolutiva»... «Se tudo já foi dito porque haveria de se repetir?»
A ausência de silêncio e o palavreado constante fizeram-nos esquecer o poder e o mistério que se escondem na profundidade da palavra. Não da palavra-casca, da palavra-sussuro, mas da palavra-eco de outra Palavra. Nessa Palavra, não há repetição, cansaço, mas a constante renovação de uma nova compreensão. Assumir para si a palavra-eco é muito diferente do que ser-se criativo e usufruir da nossa fantasia. É pôr às costas uma mochila cheia de pedras, beber todos os dias um pouco de veneno e gastar sem piedade o nosso corpo e o nosso espírito. É imergir no mal, na devastação, mergulhar nas trevas do coração, não por se sentir prazer, como quereriam os cínicos, com as próprias trevas, mas para procurar o ponto, o local, o momento em que uma réstia de luz pode nascer da mais funda escuridão.
Diante de cada folha branca, não sinto a excitação alegre que se supõe pertencer à criatividade, mas o medo de Jonas que, em vez de ir a Ninive, embarcou para Tarsis, ou o temos de Jeremias quando diz «Eu não sei falar: sou muito novo.»
Em tempos tão dramaticamente confusos, não se podem atirar as palavras ao ar como se fossem coentros, nem sacudi-las para onde calha, como se sacodem as migalhas da toalha. Cada palavra é uma semente e o terreno onde medra é o coração do homem.
Tal como as sementes, as palavras podem germinar de imediato, ou esperar anos em estado de dormência. Podem gerar flores e frutos, que proporcionam beleza e alimento, ou ervas daninhas, que cegam e sufocam quem as deixou crescer.
Há as palavras-instigação e as palavras-reflexão, palavras que explodem em raiva, em ressentimento e outras que pelo contrário, são capazes de conter qualquer tipo de explosão. A dispersão das palavras-sementes é anemófila, propaga-se com o vento, a brisa transporta-as, uma rajada de vento arranca-as, ninguém pode prever quando pousarão na terra, nem em que lugar irão cair. É também por isso que a escrita gasta, porque é um peso e, hoje mais do que nunca, uma responsabilidade.
Se há uma semente que a escrita deve propagar, não é a do repouso, de uma planta que dá sombra e abrigo, mas a da inquietação, invisível e pungente. Os campos e os bosques estão cheios de pequenas sementes espinhosas que se agarram a tudo, às orelhas dos cães, às nossas peúgas, introduzem-se sorrateiramente nas pregas das calças e da pele, obrigando-nos a mexer, a sacudir-nos, a despir-nos.
A semente da inquietação fere-nos o coração e obriga-nos a caminhar."
Bem sei, que é um pouco longo, mas creio que a sua beleza é maior ainda...
Uma braçada amiga